Ovelhas, somente ovelhas. É o que ele avista enquanto
caminha pela Paulista num domingo ensolarado, a solidão se apresentando como a
única companhia totalmente dependente dele, de modo a estar sempre pronta para
abraçá-lo, acompanha-lo, ouvir o que quer que ele tivesse a dizer. Enquanto
isso, ao seu redor, somente as ovelhas envolvidas em sua busca pela dose diária
de felicidade, droga da qual são eternos dependentes, sempre prontos a permitir
que um mártir seja sacrificado em nome de sua salvação, ainda que momentânea,
quer este seja pendurado em uma cruz, uma forca ou simplesmente pague de algum
outro jeito pelo que nunca fez. Não que isso o comova, há muito aprendeu que
nada resume mais a inocência que a simples ausência de oportunidade de se fazer
aquilo que se quer e que seria considerado um crime ou pecado por algum código
legislativo ou moral, bem como o arrependimento nada mais é que o resultado de
uma conduta dolosa que não deu certo ou que, simplesmente, levou-o a sentir-se
mal por algum motivo próprio após a prática de determinado ato. Seja como for,
seria determinado por um mal causado, em primeiro lugar, a quem o praticou, do
contrário seria substituído por uma sensação de prazer ou alívio que variariam
de acordo com as circunstâncias. Talvez após tomar aquilo que não lhe pertence,
seja a vida ou a posse de um terceiro; quem sabe após conquistar uma vaga na
universidade ou emprego público que num processo em que cada sucesso culminaria
num número maior ou menor de fracassos; possivelmente a corrupção ou ruína de
um relacionamento amoroso alheio ou a salvação, ainda que temporária, de uma
empresa maior ou menor em face da propina entregue a algum fiscal. Seja como
for, o próprio bem-estar, satisfação ou alívio estariam sempre em primeiro
lugar e todos seriamos predadores em alguma escala, prontos para manter
intactos os alicerces de nosso sorriso, muitas vezes tendo por consequência o
sorriso alheio que não hesitaríamos em apagar, se necessário, para que o nosso
não se apagasse. A necessidade como mãe da invenção, a ocasião fazendo o
ladrão, os fatos falando por si, independente de quem ache que existe bondade, altruísmo,
caridade, e não apenas um mal menor, um egoísmo disfarçado, uma tentativa de
inchaço do próprio ego camuflada por um amor ao próximo que não é mais que lobo
travestido de cordeiro.
Há muito se pergunta qual a fronteira que separa não apenas
esses a quem se refere, como a si mesmo, de um criminoso. Não os somos todos
nós? Não seriam as leis apenas um mecanismo que visa nos coagir e nos salvar de
nós mesmos, de modo que, sem elas, todo código moral, religioso que seja, seria
capaz de conter apenas alguns de nós? Ele observa o cenário à sua volta, o que
aconteceria com este povo em um dia sem lei ou até que ponto seriam capazes de
chegar se não houvesse nada que os impedisse de praticar qualquer ação dolosa
sem esperança de redenção ou medo de punição? Havendo a menor confirmação de
que não houvesse um Deus que os encaminhasse a um inferno, ou que este mesmo
inferno fosse aqui, não havendo mais nada a perder, e que a morte que tanto temem
não fosse mais que a liberdade definitiva, do que seriam capazes? Há alguma
compaixão que se possa sentir por essa gente, independentemente de sua
orientação sexual, política, grupo étnico, religião ou o que quer que seja?
Algum motivo para não considerar seu extermínio diário, constante, uma nova
forma de diversão? Ele não consegue pensar em nenhum, seja para evitar o
sofrimento alheio ou mesmo para não fazer dele uma forma de prazer, de negar as
regras criadas para transformar seu corpo em um cárcere de sua alma, de
afastá-lo de sua verdadeira natureza, de fazer o que quer que lhe desse
vontade, de matar simplesmente pela satisfação de matar, violentar pelo simples
fato de tomar posse do corpo que lhe despertasse algum desejo, pois, no final
das contas, somos todos canibais devorando a alma alheia e vivendo em um estado
constante de guerra uns contra os outros de forma velada ou ostensiva. Nas
conversas tidas nos bares, no ambiente de trabalho, no casamento, sorrisos se
tornam apenas cavalos de Tróia nos quais se escondem o inimigo que penetra em
vidas alheias no intuito de conquistar apenas o que deseja para si, ainda que
isso implique na destruição de outrem, de forma mais rápida ou lenta, direta ou
indiretamente.
E, em meio a esta busca pela felicidade, pela satisfação
própria, de serem predadores e presas em potencial ao mesmo tempo, se encontram
seus líderes, aqueles que os colocam uns contra os outros e contra quem não
conhecem qualquer capacidade de reação, de modo a atacarem uns aos outros no
desespero de mostrar que tomam alguma atitude, numa tentativa patética de
enganarem a si mesmos e mostrar algum serviço, negando o medo e a incapacidade
que, no final das contas, já os transformou em moradia permanente. Sustentados
por suas esperanças, que não se sustentam, suas crendices em uma justiça divina
e em interventores espirituais que se baseariam nos conceitos de bem e mal
defendidos por um grupo ou indivíduo, nada mais seriam que objetos submissos a
uma lei da gravidade adaptada a suas próprias consciências, a seus próprios
princípios, e que, seguindo sua tendência natural, os levaria a uma inevitável
queda. Não há dúvida que, perto desta existência de merda, pautada em ilusões e
dependente da busca diária pela própria realização ou algo rapidamente
semelhante a ela, a morte é uma benção sem medida e que não é merecida por quem
quer que seja sem ser alcançada pelo devido sofrimento no inferno que é o
mundo.
Entretanto, não resta dúvida que a existência dessas ovelhas
que creem que são lobos é um empecilho, uma pedra no sapato, algo que incomoda
como uma mosca e que tem de ser tirado do caminho. O fim de suas existências
seria realmente o ato mais misericordioso que poderia ser praticado por eles,
mas também seria extremamente desagradável para eles sentir o final de todos os
planos, expectativas, esperanças, até mesmo de suas dores, se aproximando
subitamente. Nessas horas ninguém pensa nos familiares que vai deixar para
trás, não sabe nem por que está se apegando à vida que logo se encerrará, então
por que se preocupar se há hora certa para se encontrar com quem já morreu,
lamentar por isso, até porque, em vida, estão sempre ocupados para eles?
Convencido de que não há qualquer razão para arrependimento,
de que encerrar a existência de quem quer que seja é um ato de bondade que ele
deve praticar em nome do próprio sossego e que ele realmente conquistará
satisfação levando o fim às vidas daqueles que se julgam a imagem e semelhança
de um Deus que, se é mesmo responsável pela criação da humanidade, só pode ser
tão falho e maldito quanto ela, ele começa sua seleção, observando a multidão
na avenida, e se pergunta quem, entre tantos ali, será agraciado com seus
serviços hoje. Setecentas gramas de pólvora e aço no bolso, a numeração raspada
facilitando a dispensa da ferramenta, e a dificuldade em escolher parece se
mostrar maior que a execução do ato em seguida. Bem, ao trabalho...