Érico não se sente bem. Seus pensamentos são confusos e
perturbadores e ele se pergunta sobre os acontecimentos dos últimos minutos.
Lembra-se de que, de repente, não podia ver mais nada e se pergunta se não
teria sido atacado por um assaltante ou talvez um bando deles. Tudo o que sabe
agora é que está perdido, caminhando por uma estrada que não conhece e, como se
não bastasse, sem ter a menor ideia de como veio parar ali.
Apesar da paisagem bonita, do céu azul e do clima típico de
interior, que o fazem lembrar de quando pegava a estrada com seus pais em
viagem, ele não consegue desfrutá-la e se pergunta apenas como foi parar
naquele local. Procura por sua carteira, seus documentos e nada encontra, logo
se dando conta de que realmente foi assaltado ou ao menos que esta poderia ser
a única coisa em que poderia acreditar. Alguém teria posto algo em sua cerveja?
E Claudionor, por que não está com ele? Teria o amigo sido morto por
assaltantes ou coisa pior? Por que não há uma só memória de como Érico foi
parar neste lugar? Só pode ter sido colocado em um carro e deixado por ali, mas
por que ladrões ordinários, que levaram bens de pouco valor, se dariam a este
trabalho? Não demora muito e ele começa a se perguntar se teria sido sodomizado
pelos sequestradores, embora não sinta qualquer dor ou outro sintoma que
indique que ele teria sofrido alguma violência física.
Estranhamente, algo de que não se lembra é de ter acordado...
quando recobrou sua consciência já estava nesta estrada, caminhando e se
perguntando sobre seu paradeiro atual. Outro mistério para somar à lista, seria
este o efeito da droga que teriam usado para sequestra-lo? Dividido entre as
dúvidas e o desespero de descobrir onde está para começar logo a procurar o
caminho de volta para casa, ele continua caminhando. Seu celular e seu relógio
também não estão com ele, bem como as chaves de sua casa e de seu carro;
somente as roupas do corpo permaneceram, deixando-o ainda mais desesperado e,
como se isto não bastasse, esta maldita estrada não possui uma placa que
indique onde está ou quanto terá de andar para chegar à civilização. E os
carros? Que lugar esquecido por Deus seria este, onde nem um veículo sequer
passa por ele desde que começou a caminhar? Não há casas ao redor, não há
pessoas, tudo que ele vê é um vale verde, estranhamente bem cuidado e,
curiosamente, transmissor de um sentimento de paz que, aos poucos, faz com que
ele caminhe de forma mais tranquila enquanto busca por uma solução para seu
problema. Ele mesmo chega a estranhar porque pensa cada vez menos sobre o que
pode ter acontecido à medida em que caminha pela estrada, além do fato de não ofegar
ou ao menos se cansar depois de já ter caminhado depois de um certo tempo.
Há quantas horas está andando? O dia está claro, o sol está
brilhando, mas ele não sua. Nem uma gota. Seus joelhos não doem e seus pés
estão tão relaxados como se estivesse sentado em um carro como passageiro,
talvez até mais. Ele pensa em Amélia e em como vai explicar a ela que não
conseguirá estar em casa a tempo para o jantar. Ele queria chegar cedo e
preparar algo especial em comemoração ao aniversário de casamento dos dois, mas
esta preocupação acaba, aos poucos, sendo estranhamente amortecida. Ele se pergunta
se a estrada não estaria tendo um efeito estranhamente relaxante sobre ele ou
se não estaria mais cansado do que imagina e, por isso, talvez estivesse
alucinando. Mas sabia que não poderia parar, do contrário não conseguiria sair
deste pesadelo e voltar para casa. Incrível o que pode acontecer quando você
passa rapidamente no bar para tomar uma cerveja com um camarada do serviço,
pensa ele.
A estrada parece subir e descer, causando mais tédio que cansaço à
medida que anda por ela. Subitamente, a sorte parece mudar de humor quando ele
avista, finalmente, uma cidade, visivelmente pequena, e, instintivamente,
aperta o passo, no intuito chegar logo até onde possa encontrar habitantes,
algum rosto humano que não conseguiu avistar durante sua caminhada, e ouvir uma
voz que lhe ofereça alguma ajuda e talvez esclarecimento sobre a estranha
situação em que sente se encontrar.
Com um estranho clima de cidade pequena e pacata, ele não demora a
se aproximar da primeira roda de amigos que se encontra em uma praça. Os jovens
notam sua presença e também que se trata de um forasteiro. Não há reação de
repulsa ou boas vindas, todos permanecem em seu humor atual até que Érico, num
clima mais eufórico, quebra o silêncio e indaga sobre onde poderia estar:
- Opa, beleza, rapaziada? Escuta, eu tô perdido... Acho que
puseram alguma coisa na minha bebida, eu devo ter desmaiado e acabei vindo
parar aqui. De repente apareci na estrada sem documento, celular, relógio, e
não tem nenhuma placa na estrada falando que lugar é esse... Será que vocês
podem me ajudar?
- Ah, amigo, não esquenta com isso. Vai ficar tudo bem, logo tudo
vai ser esclarecido e você vai acabar se acostumando com o lugar. No começo
leva um tempo pra se entender as coisas, mas, depois, você acaba vendo que
estar aqui é a melhor coisa que já te aconteceu.
- De qualquer forma a prefeita logo vai aparecer e vai começar aos
poucos a te explicar como as coisas funcionam aqui. Relaxa, as coisas que você
deixou pra trás nem vão te fazer falta. – Diz outra jovem, repetindo o tom de
voz calmo e a expressão relaxada, quase alegre, do amigo.
- Como assim, relaxar. Me acostumar? Eu não quero me acostumar, eu
quero achar o caminho de volta. Tenho mulher me esperando em casa, ela nem sabe
que eu sumi, e sem um telefone não dá sequer pra entrar em contato com ela.
Nenhum de vocês tem aí um celular que eu possa usar?
Os jovens quase riem. Olham uns para os outros com uma expressão
que não chega ao desdém, mas que reflete seu ponto de vista sobre as perguntas
de Érico, como se o vissem como mais um visitante que desconhecia a forma como
aquela cidade funciona.
- Não, amigo, ninguém usa celular aqui, até porque dificilmente
nos comunicamos com outros lugares. Não temos necessidade deles.
- Dificilmente...? Bom, é melhor eu ir andando porque o tempo não
para e devem estar preocupados comigo em casa. Firmeza, pessoal!
- Tempo é a menor das preocupações que a gente tem aqui, velho...
– Buscando manter a calma, Érico se afasta da estranha roda de amigos.
Acreditando que o grupo estaria drogado ou bêbado, embora não tenha notado
qualquer cheiro estranho ou presença de garrafas de bebida, ele se afasta,
ciente de que é mais importante buscar uma saída daquele local do que perder
tempo insultando os desconhecidos. Ele começa a caminhar pela cidade e,
observando as pessoas ao redor, se pergunta quem poderia abordar em busca de
uma informação sobre como entrar em contato com sua esposa.
Após alguns minutos se decidindo, e, apesar do nervosismo,
continuar sem suar ou ofegar, ele se aproxima de uma banca de jornais bem
arrumada, com acabamento em madeira bem envernizada. O jornaleiro é um homem de
idade, óculos, usando cardigan, calça social, sapatos e boina, lembrando
agradavelmente Érico da figura típica do jornaleiro local. Ele chega a cogitar,
pela primeira vez, estar gostando daquele local, se esquecendo momentaneamente
do nervosismo que sua procura chega a causar.
- Bom dia, senhor, será que pode me ajudar?
- Pode falar, garoto, o que é que tá te incomodando? É novo por
aqui, acho que ainda não te conheço...
- Não, não, na verdade eu me perdi. Eu tava bebendo com um amigo
e, do nada, me vi numa estrada, caminhando durante um tempão, até, finalmente,
vir parar nesta cidade. Mas como não vi placa nenhuma em lugar nenhum, não
tenho nem ideia de onde eu estou ou sobre como voltar...
- Nem esquenta a cabeça com isso, rapaz. Até porque ninguém aqui
está perdido, muito pelo contrário... Se está aqui você já se encontrou, todos
os seus problemas tão resolvidos. Não tem lugar melhor pra você estar do que
este.
- Ninguém está...? Senhor, eu não sei qual a situação do povo
aqui, mas eu tenho uma vida pra onde voltar, tenho minha casa, minha mulher, e
não tenho a menor ideia de como vim parar aqui. O senhor não sabe de uma
estação policial onde eu possa pedir ajuda, tem um telefone que eu possa usar,
qualquer coisa assim?
- Olha...Tudo o que você precisa saber é que não tem com o que se
preocupar. E não, a gente não usa telefone aqui. Não tem internet também, o
povo aqui não tem necessidade de se comunicar com o mundo exterior, salvo
certas ocasiões, diz o jornaleiro, com um tom educado, mostrando hospitalidade.
- Como assim, não tenho com o que me preocupar? Senhor, não me
leve a mal, mas já tô começando a achar que o povo dessa cidade é completamente
doido! Nenhum telefone, nenhum carro na rua, não tem postes e nem linha
telefônica... Que lugar esquecido por Deus é esse? – o homem sorri.
- Não, jovem, Deus não tem nada a ver com isso... Mas tudo bem, eu
entendo que você esteja apreensivo, quando eu cheguei aqui também foi bem
repentino e eu levei um certo tempo pra aceitar. Logo você se encontra com a
prefeita e aí ela vai te explicar como as coisas funcionam.
-Eu não quero falar com prefeita nenhuma, eu quero achar o caminho
de volta pra casa, ver minha mulher, sair daqui! Não quero me acostumar com
esse lugar ou com qualquer outra coisa que seja! Tô tentando ser legal, manter
a calma, mas, pelo jeito, aqui isso vai ser um desafio!
O jornaleiro sorri, e, então, senta-se em sua cadeira, apoiando os
cotovelos sobre as coxas. Érico se afasta, continuando sua caminhada e
abordando o máximo de pessoas possível, desde um comerciante a um frentista,
passando por um casal, todos utilizando os mesmos argumentos e, como não
poderia deixar de ser, fazendo referência à prefeita daquela cidade. Sem saber
o que fazer e vendo que talvez tenha de nadar conforme a maré, ele decide
ceder, e aborda um último transeunte perguntando-lhe onde encontrar aquela que
talvez seja a única que possa indicar-lhe alguma rota certa para seguir.
- Amigo, como eu chego até a prefeitura?
- Praça central, velho, é só seguir em frente. Não tem como errar,
você tá no caminho certo.
Ansioso por finalmente encontrar uma solução para o problema, ele
caminha rumo à prefeitura. No caminho observa um pouco mais a realidade do
local, as montanhas ao redor, o cenário bem arborizado, as florestas nas
proximidades e a bela arquitetura das casas. O ar é de uma pureza que ele nunca
havia respirado, já que sempre morou em São Paulo, e tudo é de uma limpeza
tamanha que novamente ele considera permanecer por ali, como se, estranhamente,
começasse a se conformar com os acontecimentos atuais de uma forma que nem
mesmo ele consegue entender.
Afinal, que local seria esse? Sem linhas telefônicas, internet,
carros, placas, sem comunicação com o mundo exterior. De onde viria toda esta
autossuficiência? Como seria possível manter o local sem qualquer contato com
outras cidades se a localidade é visivelmente residencial? Este parece ser um
assunto interessante em que se pensar. Subitamente ele pensa em procurar um
hospital para saber se foi ou não drogado ou envenenado, o que teria resultado
em tudo que está acontecendo. Mas, antes de tudo, tinha que conversar com a tão
falada prefeita e torcer para que ela lhe desse ao menos uma demonstração de
ser mais saudável mentalmente que o resto da cidade, cujo próprio nome ele
ainda não sabia.
Poucos metros adiante ele avista a prefeitura. Um prédio bonito,
com acabamento em tijolinhos, janelas bem limpas, dois andares e uma estrutura
típica de uma casa escandinava, bem como as outras casas da cidade. Ele se
aproxima e vê as portas de madeira bem abertas, entrando e sentindo uma
atmosfera extremamente convidativa, vendo um grupo de funcionários de ambos os
sexos trabalhando, desempenhando funções típicas das que se espera de um prédio
público. Avista, então, uma mulher em uma mesa ao centro dos outros
trabalhadores e, acreditando tratar-se de alguém em posição de chefia, se
aproxima no intuito de pedir uma informação.
- Olá, Érico, chegou bem? – Ele engole seco e não consegue
esconder a surpresa ao ouvir a mulher. Como saberia o seu nome? Ele chegou
àquele local sem documentos ou qualquer papel que pudesse identifica-lo e
também não se lembra de ter dito quem era a qualquer dos transeuntes com quem
falou ao longo do caminho desde sua chegada. Como ela poderia saber de quem se
tratava tão rapidamente?
Os dois sobem por uma escada com acabamento em mármore com
corrimões feitos de material belo, porém desconhecido por ele. Assim que chegam
ao andar superior ele avista sofás de camurça em uma antessala, móveis bem
cuidados e uma porta que ela bate para, logo em seguida, ouvir uma voz tão
suave quanto firme responder à sua batida:
- Entre, está aberta. – A mulher abre a porta e não acompanha
Érico na entrada. Ele percebe a saída da funcionária e ao olhar para uma mesa
próxima à janela da enorme sala vê uma mulher alta, de corpo escultural,
cabelos negros e olhos que ele nota serem de um azul celestial, embora ela
mantenha o rosto baixo por estar lendo alguns papéis que logo coloca sobre sua
mesa. Sua pele é branca como leite, na medida correta para combinar com seus
olhos e cabelo, e o fascínio dele por ela é tamanho que ele chega a quase se
esquecer o que o teria levado até lá.
- Como vai, Érico? A viagem foi confusa, talvez um pouco
perturbada, mas imagino que logo toda confusão em que você se encontra irá se
resolver. Sente-se.
- Bom... Não vou estranhar o fato de você saber meu nome, pois sua
funcionária também sabia... Mas como sabe quem eu sou se eu estou sem
documentos ou o que quer que seja, eu cheguei nesta cidade sem nem saber
como... a menos que vocês tenham encontrado minhas coisas, carteira, celular,
relógio, a polícia sabe quem os pegou?
A mulher se aproxima e se senta próximo a ele. Ela demonstra se
sentir à vontade, como se há muito conhecesse Érico e ele nota em si uma
atitude de quase intimidade com a prefeita, praticamente ignorando a situação
em que se encontra, talvez pelo fascínio que sua beleza despertou nele.
Sentada, as pernas juntas e os cotovelos sobre as coxas, é ela quem inicia um
diálogo, com uma postura que parece misturar uma sensualidade contida a um amor
quase maternal, fazendo-o quase que voluntariamente declará-la como a dona de
toda a situação.
- O que está acontecendo com você não é de todo estranho.
Praticamente todos que vieram parar aqui não se lembram de ter chegado a este
lugar, que nós vamos chamar de cidade. Seja como for, a situação em que você se
encontra nem de longe é tão ruim quanto você acredita que é.
- Olha, eu já escutei coisa parecida de um monte de gente aqui
hoje, e o ponto em comum é que todos me disseram pra procurar a prefeita da
cidade. Eu vim aqui, então, acreditando que ia ter algum esclarecimento, que
alguém ia me ajudar a resolver minha situação e talvez até a voltar pra casa,
mas, agora, tudo que eu tô escutando é a mesma ladainha de que eu não preciso
me preocupar, que tudo está bem e que meu lugar é aqui. Afinal, o que tá
acontecendo? Você é parte desse complô, desse sequestro? Isso é pegadinha ou o
quê? E que catso de cidade é essa onde não se tem placas indicativas, onde não
se passa carro na rua, sem internet, telefone ou qualquer tipo de comunicação?
Acho que já chegou a hora de alguém me dar uma explicação plausível... – A
explanação de Érico é subitamente interrompida quando ele é subitamente
surpreendido por uma expressão do rosto da mulher que lhe fazem sentir como se
subitamente a temperatura de seu próprio corpo houvesse despencado; um leve
sorriso e um olhar que, estranhamente, lhe mostram uma expressão vazia,
desprovida de calor humano ou sequer de vida, lhe causam uma emoção que se
coloca entre um medo terrível e um fascínio alucinante, ao qual ele não teria
escolha senão se render. Ele respira fundo, ainda que por reflexo, já que não
há necessidade voraz de tomar fôlego, e não encontra mais palavras para
prosseguir, de forma que a voz dela é a próxima a ser ouvida e mesmo a se
impor, embora de forma mais aceita que forçada.
- Eu tenho total ciência de sua situação, Érico da Costa Mendes.
- Mas como sabe quem eu sou? Também sabe como vim parar aqui?
- Sim. Da mesma forma que sei da estória de todos com quem você
conversou desde que chegou aqui. Eu conheço a todos, pois, cada um deles, ainda
que indiretamente, tem uma estória ligada a mim, uma vez que, no final de cada
uma delas, viriam se encontrar comigo um dia. Nosso encontro não foi casual,
cedo ou tarde iria ocorrer, embora a forma como ocorreu não lhes fosse esperada
e decorrente da ação direta ou indireta deles.
- Pelo jeito a última coisa que vou conseguir aqui é uma resposta
direta...
- Talvez porque ainda não esteja preparado pra ter uma... Ou nem
precise, talvez você já saiba onde está e simplesmente não esteja preparado
psicologicamente para aceitar isso.
- Claro que não aceito, eu tenho minha vida, minha casa, minha
mulher... não quero estar em outro lugar que não seja com ela. Admito que
fiquei admirado pelo sossego deste lugar e francamente pensei até em mudar pra
cá um dia, mas esse agora não é o caso.
- Eu diria que é exatamente o caso, Érico. Você vai caminhar
comigo agora, existe um local que eu preciso lhe mostrar.
- Moça, eu não vou a lugar nenhum, tudo que eu quero saber é onde
eu estou, que cidade é essa e como posso voltar pra... casa. – quando Érico
está para terminar a frase, a misteriosa mulher coloca a mão em seu rosto e ele
percebe sua visão se apagar por um lapso de tempo tão curto que ele não
conseguiria descrever. Da mesma forma que há pouco ele se encontrava em uma
estrada deserta sem saber como havida ido parar ali, agora se via em uma rua
residencial, na calçada em frente a uma de suas casas:
- Mas que catso...
- Calma, Érico, você não tem nada a temer. Me acompanhe.
- Meu, agora eu tenho certeza, foi alguma coisa que botaram na
minha cerveja...
- Eu posso garantir que a cerveja que tomou estava ótima. Aliás, a
despeito do seu país não ser necessariamente um dos melhores fabricantes, você
fez o favor a si mesmo de apenas consumir os melhores licores possíveis. Agora,
venha.
- Pra onde? – Ela aponta.
- Pra dentro desta casa. É um lugar que você precisa conhecer.
Os dois sobem os degraus da entrada frontal de uma casa de
arquitetura com a qual a maioria dos brasileiros não se encontra familiarizada.
A fachada é bem semelhante à da prefeitura, lembrando ainda as casas de
famílias de classe média alta que Érico está acostumado a ver em filmes
americanos.
- Olha, eu já tenho praticamente certeza que isso aqui é só um
sonho doido, que eu bebi demais e caí no sono na mesa do bar e que o Claudionor
vai me acordar daqui a pouco com um copo de água gelada na cara. Beleza, vamos
ver o que tá acontecendo aqui.
- Claudionor está ocupado demais para acordar você, Érico. Esta
casa é sua, é aqui que você vai passar seus próximos dias, espero que vá se
sentir confortável.
- Minha casa? Você é prefeita desta cidade ou é corretora de
imóveis? Por um lado, parecem ser totalmente autossuficientes, por outro até a
prefeita faz um corre como corretora pra poder se manter?! Bom, orçamento de
cidade pequena deve ser uma mer...
- Eu não estou colocando este imóvel à venda. Esta casa pertence a
você. Você vai estar passando seus dias neste local e não vai retornar ao lugar
onde vive. Não existe uma versão desta realidade em que você deixa este plano e
retorna até sua esposa.
- Tá, e o que te faz pensar que eu pretendo ficar aqui? Vamos ver
que argumento você vai usar pra me convencer.
- Eu preciso de argumentos para convencê-lo tanto quanto uma pedra
precisa de algum para afundar em um rio, Érico. Quanto mais cedo você aceitar o
que aconteceu em vez de questionar aquilo que eu digo, melhor será.
- E o que aconteceu?
- Você não se lembra de quando estava com Claudionor no bar e,
subitamente, em meio à cerveja e os salgadinhos, começou a se sentir mal? Não
lembra do formigamento no braço, da dor no estômago e os tremores na boca antes
de tudo começar a ficar escuro?
E, subitamente, as lembranças começam a se manifestar na mente de
Érico, mudando a expressão em seu rosto. Um medo terrível toma conta de si e
ele aos poucos se vê novamente em um bar, junto ao amigo Claudionor, que
procura ajuda em volta à medida em que ele começa a enfartar enquanto os dois
matam uma caneca atrás da outra, riem, conversam, e detonam uma tábua de frios,
como é de seu costume nas sextas-feiras. Ele se vê, caindo ao chão, enquanto
Claudionor observa, atônito, sem saber como reagir ao problema sem piorar a
condição do amigo, e a multidão se perde, perguntando uns aos outros o que
acontece até que, finalmente, Érico começa a vomitar, deitado, terminando por
morrer afogado com o próprio vômito. A forma como ele treme e se convulsiona
chega a ser tão hilária que alguns, mais ou menos bêbados, observam e começam a
rir.
Sem conseguir suportar a carga de imagens e enfraquecido pela
súbita consciência de que o que presencia agora não é um sonho, Érico sente as
pernas enfraquecerem, sentando-se ao sofá que se encontra próximo de si, diante
dos olhos da prefeita, que apenas o observa, sem demonstrar qualquer reação,
como se já estivesse esperando que Érico não fosse suportar o que viu.
- Não... isso é conversa...não pode tá acontecendo, eu não tenho
idade pra isso ainda...
- Mas está acontecendo, Érico. E, como eu disse, quanto antes você
aceitar, melhor. Ou será que é tão difícil aceitar que está morto?
Uma decepção sem limites acaba por tomar conta de Érico, que leva
as mãos ao rosto e pensa em tudo que ficou para trás, desde o trabalho, a
esposa, sua casa, todas as possibilidades de ascensão na carreira de
engenheiro, tudo, de repente, se mostra distante, exceto por suas lembranças.
Quando finalmente consegue ficar de pé, ele se volta à mulher, tomando fôlego,
novamente mais por força do hábito, e retoma o diálogo, ainda tentando conter o
nervosismo:
- E quem é você?
- Você sabe quem eu sou... mas eu acho este visual mais
interessante que o do manto e da foice...até porque leva mais tempo que pra
alguns do que pra outros aceitar que veio parar aqui. Mas, como eu disse ou
outros que são aspectos e até extensões de mim já te disseram, você não tem o
que temer aqui. Aliás, se existe algo de que você está livre, agora, é do temor
do que quer que seja.
- Mas o que vai ser de mim? Tudo que eu mais amava, tudo e todos,
ficaram pra trás. O que eu vou fazer aqui, com todos que eu amava longe de mim?
- Tão logo você aprenda a se desapegar do que ficou para trás você
encontrará toda paz que existe aqui. É o único jeito de se libertar e não
permanecer preso nesse sentimento de uma eterna luta que você nunca vai vencer.
Mas eu tenho intenção de ajudar você a se preparar para sua nova fase, desde
que esteja aberto a isso.
- Acho que não tenho mais escolha... tenho?
- Não, você não tem... Mas eu posso lhe garantir que você não tem
razão alguma para me odiar ou me temer, pois não fui concebida para ser seu
mal, mas, talvez, o seu bem maior, haja visto que, todos os bens, depois de
mim, se tornam desnecessários. Sejam eles sentimentais, materiais ou
espirituais.
- Como você mesma disse, acho que não tenho escolha a não ser
acreditar nisso.
- E digo porque você verá que outra opção não existe pelo fato de
eu ser a única escolha real. Caminhe comigo e vamos conhecer o lar com que eu
te presenteei, enquanto eu lhe falo um pouco mais sobre a dimensão dos fatos
ocorridos aqui.
Eles iniciam uma caminhada ao longo do imóvel, da cozinha até os
quartos, dos banheiros até o sótão, indo até a saída dos fundos, enquanto
aquela que se revelou como o fim de tudo esclarece a razão de ser a única opção
que pode ser acatada por Érico:
- Ao contrário do que foi passado ao longo de sua vida ou a dos
demais, não existe forma de eu ser considerada como algo maligno ou cujo toque
deveria ser temido. Ser acolhido por mim é tão natural quanto nascer. Em um
dado momento você é recebido pelo seu mundo e, quase que simultaneamente,
começa a ser preparado para adentrar o meu. Seus alimentos, o oxigênio que
respira, o modo de vida que escolhem, tornam vocês totalmente propícios a se
tornarem meus súditos, sem qualquer exceção e em tempos diferentes. Neste exato
momento eu estou aqui, me apresentando a você, e outros aspectos de meu ser, da
grande extensão dele, estão agindo em seu mundo. Do cristão ao ateu, do
muçulmano ao judeu, não existe um único que vá deixar de ser tocado por mim.
Desde que o primeiro ser humano, a primeira bactéria, vírus, animal, tudo que
possui vida animada ou não viveu pela primeira vez lá estava eu, pronta e
atuante, esperando apenas pelo momento de colher sua alma e aumentar minhas
fileiras. Não porque quero, mas porque não teria como ser de outra forma já
que, tudo que nasce, morre. Ignore as estórias e lendas sobre quem escapou de
meu reino como se ele fosse um inferno ou algo onde se vem para encontrar o
sofrimento ou como se a vida fosse a maior de todas as dádivas concebidas. A
vida, que foi apresentada a você como o mais precioso de todos os dons, por
falsos sacerdotes que tinham por objetivo apenas manter sua espécie sob
controle, é algo frágil e que tem de ser constantemente alimentada, seja pela
busca da felicidade ou através de uma luta diária que apenas os mais fortes
entre vocês podem suportar. É por isso que eu, diariamente, venho a ceifar
milhões de vidas, existindo e sendo a mesma desde o início dos tempos.
-O que você quer dizer com “manter sua espécie sob controle”? Quer
dizer que Deus não existe?
- Talvez você devesse se perguntar se o suposto criador, este que
sua espécie optou por chamar de Deus, não seria, na verdade, um monstro, uma
vez que seus correlatos humanos são frágeis física e moralmente e precisam ser
ensinados a praticar aquilo que consideram ser bom e já nascem sabendo o que
consideram ser ruim, ao passo que animais, considerados inferiores, já parecem
ter plena noção de que o que fazem é apenas pela sobrevivência. Entre humanos
não se encontram bons ou maus, exceto por suas próprias concepções pessoais,
como o fato de que servir a um Deus que consideram superior se torna, na
maioria dos casos, uma justificativa para suas ações, sejam elas quais forem.
Mas, ironicamente, os seguidores deste Deus são justamente os mais capazes de
praticar ações típicas daqueles que julgam, criticam e perseguem, pois eles
mesmos buscam a este Deus não por amor, mas porque precisam de salvação. Mas,
diferente dos que servem ao chamado anjo caído, os servidores do Pai Celestial
não são capazes de assumir que buscam o paraíso, ao contrário dos que são
perseguidos por eles e assumem estar atrás de favores. Me diga, então, se este
Deus é perfeito, como pode ter se arrependido da criação da humanidade e tê-la
destruída por um dilúvio? Arrependimento pressupõe erro, quem erra não pode ser
considerado perfeito. Ou será que não pensaram nisso durante a concepção Dele?
As reflexões da morte deixam Érico perplexo, somando-se aos
acontecimentos desde sua chegada àquela terra.
- Mas apesar do que você diz, existem coisas boas, como minha
mulher, meus amigos...
- Imagino que se refira à sua realização pessoal através da total
dependência daqueles que diz amar. Ora, o que é o amor humano senão um lobo
vestido de cordeiro, uma vez que mesmo quando você ama alguém a ponto de dar
sua vida por esta pessoa o está fazendo, em primeiro lugar, porque isso
satisfaz a você mesmo? Acredita que não é assim com sua mulher, com seus amigos
ou que até mesmo o Jesus criado pelos cristãos não se sacrificou unicamente
pelo temor de ser condenado ao inferno de seu Deus? Ou que esse amor realmente
seria perfeito, como este mesmo Deus que, talvez por vaidade, permitiu que uma
provocação de Satanás o levasse a condenar seu servo, Jó, a um sofrimento
infernal unicamente para provar que mesmo sob tormento ele seria leal? Já parou
pra pensar que a espinha dorsal desta crença é justamente o fato de que quem
paga por seus pecados é alguém que nada tem a ver com eles, um inocente sem
falta alguma, algo que parece mais o papel do próprio diabo? No que diz
respeito aqueles que você ama eu poderia dizer muito mais, acha mesmo que
sempre houve lealdade, que você foi o único entre aqueles com quem se relaciona
a ter se deitado sobre sua cama e possuir sua esposa? Mesmo quando ela mais te
amou e mais alegou ser leal, no final das contas, ela só foi leal a si mesma.
Érico permanece estático, não apenas pelas palavras fortes que
acaba de ouvir, mas pelo fato de terem sido pronunciadas por alguém com
autoridade para fazê-lo e que, sem dúvida, conhece o plano espiritual na
prática e teoria. O que poderia dizer agora, uma vez que tomou conhecimento do
que é, do que foi sua própria vida e que tudo o que viveu, dos bons aos maus
momentos, pode não ter realmente sido aquilo que seus olhos acreditavam ter
sido.
- O que eu sou, então, o que foi minha vida, tudo o que eu passei?
No final tudo não passou de uma encenação, não existe paz pra mim?
- Você, como todo o resto, foi apenas mais um personagem no
repertório de piadas de humor negro de Deus, que alguns escolheram chamar de
existência. Outro ser cujo desejo e vontade foram moldados para servir ao
interesse do coletivo porque não conseguiriam viver em paz uns com os outros,
caso fizessem aquilo que realmente têm vontade, haja visto que seu único
propósito de existência é a autodestruição. Menos para alguns, mais para
outros, seja como for, a grande realidade é que vocês nasceram para serem doutrinados,
salvo raras exceções. A única paz verdadeira que você encontrará será no
momento em que aceitar a mim, deixar para trás aquilo que já chamou de vida e
reconhecer que eu sou o único caminho real. Mesmo porque você não irá a parte
alguma além daqui, quer aceite isso ou não. Caminhará algumas vezes pelo mundo
dos vivos, causando momentos de distúrbio aos que estiverem ao redor e também a
si mesmo, a menos que aceite que tudo está acabado e que agora, sim, você está
completo e habitando um plano que pode chamar de superior.
Ele respira fundo mais uma vez, e olha em volta. Pensa no que foi
dito, pensa no que virá em seguida e, ao mesmo tempo, tenta entender um
estranho sentimento de paz que parece se sobrepor à angustia que sentiu no
momento em que soube que sua vida se extinguira. A esposa, os amigos, a casa,
parecem, como que automaticamente, se tornar uma reles recordação, já
consciente que em breve nem mesmo isso serão. Final e inevitavelmente decidido,
ele se vira para aquela que se tornou seu destino final e lhe responde, desta
vez, sem hesitação ou medo:
- Eu aceito você... mas o que vem em seguida?
Ela mais uma vez toca o rosto de Érico, que torna a ver tudo se
apagar para, logo em seguida, se ver em um quarto, que acredita ser seu:
- Agora venha. Me ame, me tome, ao mesmo tempo em que será tomado,
e me aceite como única verdade neste plano, que será o único que você virá a
conhecer daqui em diante. – Ela retira seu vestido e em seguida despe o
recém-chegado, levando-o para cama, e ambos passam qualquer que seja o conceito
de tempo utilizado naquele plano espiritual em um misto de ternura, depravação
e destreza física. O tempo parece parar totalmente, como seria de se esperar de
dois seres que possuem a eternidade à sua disposição. As poucas lembranças da
vida anterior de Érico logo desaparecem ou se tornam tão importantes quanto
seriam caso não pudessem ser detectadas em sua mente. Seja como for, ele a
invade até a exaustão fazendo uso de uma disposição que só o desespero ou a
total paz de espírito poderiam lhe conceder e, tão logo terminem, permanecem
deitados nos braços um do outro, sentindo a respiração arfante e o pulso
acelerado um do outro.
Horas depois, ela se levanta, se veste e parte, sorrindo
delicadamente para o homem cuja alma agora é propriedade sua. De alguma
maneira, Érico não espera necessariamente voltar a vê-la, pois o principal já
foi feito: ele a aceitou, a amou e agora está em paz como jamais esteve e
jamais estará.