domingo, 20 de outubro de 2024

O plano superior - da obra "Toda Blasfêmia Será Abençoada"

 

Érico não se sente bem. Seus pensamentos são confusos e perturbadores e ele se pergunta sobre os acontecimentos dos últimos minutos. Lembra-se de que, de repente, não podia ver mais nada e se pergunta se não teria sido atacado por um assaltante ou talvez um bando deles. Tudo o que sabe agora é que está perdido, caminhando por uma estrada que não conhece e, como se não bastasse, sem ter a menor ideia de como veio parar ali.

Apesar da paisagem bonita, do céu azul e do clima típico de interior, que o fazem lembrar de quando pegava a estrada com seus pais em viagem, ele não consegue desfrutá-la e se pergunta apenas como foi parar naquele local. Procura por sua carteira, seus documentos e nada encontra, logo se dando conta de que realmente foi assaltado ou ao menos que esta poderia ser a única coisa em que poderia acreditar. Alguém teria posto algo em sua cerveja? E Claudionor, por que não está com ele? Teria o amigo sido morto por assaltantes ou coisa pior? Por que não há uma só memória de como Érico foi parar neste lugar? Só pode ter sido colocado em um carro e deixado por ali, mas por que ladrões ordinários, que levaram bens de pouco valor, se dariam a este trabalho? Não demora muito e ele começa a se perguntar se teria sido sodomizado pelos sequestradores, embora não sinta qualquer dor ou outro sintoma que indique que ele teria sofrido alguma violência física.

Estranhamente, algo de que não se lembra é de ter acordado... quando recobrou sua consciência já estava nesta estrada, caminhando e se perguntando sobre seu paradeiro atual. Outro mistério para somar à lista, seria este o efeito da droga que teriam usado para sequestra-lo? Dividido entre as dúvidas e o desespero de descobrir onde está para começar logo a procurar o caminho de volta para casa, ele continua caminhando. Seu celular e seu relógio também não estão com ele, bem como as chaves de sua casa e de seu carro; somente as roupas do corpo permaneceram, deixando-o ainda mais desesperado e, como se isto não bastasse, esta maldita estrada não possui uma placa que indique onde está ou quanto terá de andar para chegar à civilização. E os carros? Que lugar esquecido por Deus seria este, onde nem um veículo sequer passa por ele desde que começou a caminhar? Não há casas ao redor, não há pessoas, tudo que ele vê é um vale verde, estranhamente bem cuidado e, curiosamente, transmissor de um sentimento de paz que, aos poucos, faz com que ele caminhe de forma mais tranquila enquanto busca por uma solução para seu problema. Ele mesmo chega a estranhar porque pensa cada vez menos sobre o que pode ter acontecido à medida em que caminha pela estrada, além do fato de não ofegar ou ao menos se cansar depois de já ter caminhado depois de um certo tempo.

Há quantas horas está andando? O dia está claro, o sol está brilhando, mas ele não sua. Nem uma gota. Seus joelhos não doem e seus pés estão tão relaxados como se estivesse sentado em um carro como passageiro, talvez até mais. Ele pensa em Amélia e em como vai explicar a ela que não conseguirá estar em casa a tempo para o jantar. Ele queria chegar cedo e preparar algo especial em comemoração ao aniversário de casamento dos dois, mas esta preocupação acaba, aos poucos, sendo estranhamente amortecida. Ele se pergunta se a estrada não estaria tendo um efeito estranhamente relaxante sobre ele ou se não estaria mais cansado do que imagina e, por isso, talvez estivesse alucinando. Mas sabia que não poderia parar, do contrário não conseguiria sair deste pesadelo e voltar para casa. Incrível o que pode acontecer quando você passa rapidamente no bar para tomar uma cerveja com um camarada do serviço, pensa ele.

A estrada parece subir e descer, causando mais tédio que cansaço à medida que anda por ela. Subitamente, a sorte parece mudar de humor quando ele avista, finalmente, uma cidade, visivelmente pequena, e, instintivamente, aperta o passo, no intuito chegar logo até onde possa encontrar habitantes, algum rosto humano que não conseguiu avistar durante sua caminhada, e ouvir uma voz que lhe ofereça alguma ajuda e talvez esclarecimento sobre a estranha situação em que sente se encontrar.

Com um estranho clima de cidade pequena e pacata, ele não demora a se aproximar da primeira roda de amigos que se encontra em uma praça. Os jovens notam sua presença e também que se trata de um forasteiro. Não há reação de repulsa ou boas vindas, todos permanecem em seu humor atual até que Érico, num clima mais eufórico, quebra o silêncio e indaga sobre onde poderia estar:

- Opa, beleza, rapaziada? Escuta, eu tô perdido... Acho que puseram alguma coisa na minha bebida, eu devo ter desmaiado e acabei vindo parar aqui. De repente apareci na estrada sem documento, celular, relógio, e não tem nenhuma placa na estrada falando que lugar é esse... Será que vocês podem me ajudar?

- Ah, amigo, não esquenta com isso. Vai ficar tudo bem, logo tudo vai ser esclarecido e você vai acabar se acostumando com o lugar. No começo leva um tempo pra se entender as coisas, mas, depois, você acaba vendo que estar aqui é a melhor coisa que já te aconteceu.

- De qualquer forma a prefeita logo vai aparecer e vai começar aos poucos a te explicar como as coisas funcionam aqui. Relaxa, as coisas que você deixou pra trás nem vão te fazer falta. – Diz outra jovem, repetindo o tom de voz calmo e a expressão relaxada, quase alegre, do amigo.

- Como assim, relaxar. Me acostumar? Eu não quero me acostumar, eu quero achar o caminho de volta. Tenho mulher me esperando em casa, ela nem sabe que eu sumi, e sem um telefone não dá sequer pra entrar em contato com ela. Nenhum de vocês tem aí um celular que eu possa usar?

Os jovens quase riem. Olham uns para os outros com uma expressão que não chega ao desdém, mas que reflete seu ponto de vista sobre as perguntas de Érico, como se o vissem como mais um visitante que desconhecia a forma como aquela cidade funciona.

- Não, amigo, ninguém usa celular aqui, até porque dificilmente nos comunicamos com outros lugares. Não temos necessidade deles.

- Dificilmente...? Bom, é melhor eu ir andando porque o tempo não para e devem estar preocupados comigo em casa. Firmeza, pessoal!

- Tempo é a menor das preocupações que a gente tem aqui, velho... – Buscando manter a calma, Érico se afasta da estranha roda de amigos. Acreditando que o grupo estaria drogado ou bêbado, embora não tenha notado qualquer cheiro estranho ou presença de garrafas de bebida, ele se afasta, ciente de que é mais importante buscar uma saída daquele local do que perder tempo insultando os desconhecidos. Ele começa a caminhar pela cidade e, observando as pessoas ao redor, se pergunta quem poderia abordar em busca de uma informação sobre como entrar em contato com sua esposa.

Após alguns minutos se decidindo, e, apesar do nervosismo, continuar sem suar ou ofegar, ele se aproxima de uma banca de jornais bem arrumada, com acabamento em madeira bem envernizada. O jornaleiro é um homem de idade, óculos, usando cardigan, calça social, sapatos e boina, lembrando agradavelmente Érico da figura típica do jornaleiro local. Ele chega a cogitar, pela primeira vez, estar gostando daquele local, se esquecendo momentaneamente do nervosismo que sua procura chega a causar.

- Bom dia, senhor, será que pode me ajudar?

- Pode falar, garoto, o que é que tá te incomodando? É novo por aqui, acho que ainda não te conheço...

- Não, não, na verdade eu me perdi. Eu tava bebendo com um amigo e, do nada, me vi numa estrada, caminhando durante um tempão, até, finalmente, vir parar nesta cidade. Mas como não vi placa nenhuma em lugar nenhum, não tenho nem ideia de onde eu estou ou sobre como voltar...

- Nem esquenta a cabeça com isso, rapaz. Até porque ninguém aqui está perdido, muito pelo contrário... Se está aqui você já se encontrou, todos os seus problemas tão resolvidos. Não tem lugar melhor pra você estar do que este.

- Ninguém está...? Senhor, eu não sei qual a situação do povo aqui, mas eu tenho uma vida pra onde voltar, tenho minha casa, minha mulher, e não tenho a menor ideia de como vim parar aqui. O senhor não sabe de uma estação policial onde eu possa pedir ajuda, tem um telefone que eu possa usar, qualquer coisa assim?

- Olha...Tudo o que você precisa saber é que não tem com o que se preocupar. E não, a gente não usa telefone aqui. Não tem internet também, o povo aqui não tem necessidade de se comunicar com o mundo exterior, salvo certas ocasiões, diz o jornaleiro, com um tom educado, mostrando hospitalidade.

- Como assim, não tenho com o que me preocupar? Senhor, não me leve a mal, mas já tô começando a achar que o povo dessa cidade é completamente doido! Nenhum telefone, nenhum carro na rua, não tem postes e nem linha telefônica... Que lugar esquecido por Deus é esse? – o homem sorri.

- Não, jovem, Deus não tem nada a ver com isso... Mas tudo bem, eu entendo que você esteja apreensivo, quando eu cheguei aqui também foi bem repentino e eu levei um certo tempo pra aceitar. Logo você se encontra com a prefeita e aí ela vai te explicar como as coisas funcionam.

-Eu não quero falar com prefeita nenhuma, eu quero achar o caminho de volta pra casa, ver minha mulher, sair daqui! Não quero me acostumar com esse lugar ou com qualquer outra coisa que seja! Tô tentando ser legal, manter a calma, mas, pelo jeito, aqui isso vai ser um desafio!

O jornaleiro sorri, e, então, senta-se em sua cadeira, apoiando os cotovelos sobre as coxas. Érico se afasta, continuando sua caminhada e abordando o máximo de pessoas possível, desde um comerciante a um frentista, passando por um casal, todos utilizando os mesmos argumentos e, como não poderia deixar de ser, fazendo referência à prefeita daquela cidade. Sem saber o que fazer e vendo que talvez tenha de nadar conforme a maré, ele decide ceder, e aborda um último transeunte perguntando-lhe onde encontrar aquela que talvez seja a única que possa indicar-lhe alguma rota certa para seguir.

- Amigo, como eu chego até a prefeitura?

- Praça central, velho, é só seguir em frente. Não tem como errar, você tá no caminho certo.

Ansioso por finalmente encontrar uma solução para o problema, ele caminha rumo à prefeitura. No caminho observa um pouco mais a realidade do local, as montanhas ao redor, o cenário bem arborizado, as florestas nas proximidades e a bela arquitetura das casas. O ar é de uma pureza que ele nunca havia respirado, já que sempre morou em São Paulo, e tudo é de uma limpeza tamanha que novamente ele considera permanecer por ali, como se, estranhamente, começasse a se conformar com os acontecimentos atuais de uma forma que nem mesmo ele consegue entender.

Afinal, que local seria esse? Sem linhas telefônicas, internet, carros, placas, sem comunicação com o mundo exterior. De onde viria toda esta autossuficiência? Como seria possível manter o local sem qualquer contato com outras cidades se a localidade é visivelmente residencial? Este parece ser um assunto interessante em que se pensar. Subitamente ele pensa em procurar um hospital para saber se foi ou não drogado ou envenenado, o que teria resultado em tudo que está acontecendo. Mas, antes de tudo, tinha que conversar com a tão falada prefeita e torcer para que ela lhe desse ao menos uma demonstração de ser mais saudável mentalmente que o resto da cidade, cujo próprio nome ele ainda não sabia.

Poucos metros adiante ele avista a prefeitura. Um prédio bonito, com acabamento em tijolinhos, janelas bem limpas, dois andares e uma estrutura típica de uma casa escandinava, bem como as outras casas da cidade. Ele se aproxima e vê as portas de madeira bem abertas, entrando e sentindo uma atmosfera extremamente convidativa, vendo um grupo de funcionários de ambos os sexos trabalhando, desempenhando funções típicas das que se espera de um prédio público. Avista, então, uma mulher em uma mesa ao centro dos outros trabalhadores e, acreditando tratar-se de alguém em posição de chefia, se aproxima no intuito de pedir uma informação.

- Olá, Érico, chegou bem? – Ele engole seco e não consegue esconder a surpresa ao ouvir a mulher. Como saberia o seu nome? Ele chegou àquele local sem documentos ou qualquer papel que pudesse identifica-lo e também não se lembra de ter dito quem era a qualquer dos transeuntes com quem falou ao longo do caminho desde sua chegada. Como ela poderia saber de quem se tratava tão rapidamente?

Os dois sobem por uma escada com acabamento em mármore com corrimões feitos de material belo, porém desconhecido por ele. Assim que chegam ao andar superior ele avista sofás de camurça em uma antessala, móveis bem cuidados e uma porta que ela bate para, logo em seguida, ouvir uma voz tão suave quanto firme responder à sua batida:

- Entre, está aberta. – A mulher abre a porta e não acompanha Érico na entrada. Ele percebe a saída da funcionária e ao olhar para uma mesa próxima à janela da enorme sala vê uma mulher alta, de corpo escultural, cabelos negros e olhos que ele nota serem de um azul celestial, embora ela mantenha o rosto baixo por estar lendo alguns papéis que logo coloca sobre sua mesa. Sua pele é branca como leite, na medida correta para combinar com seus olhos e cabelo, e o fascínio dele por ela é tamanho que ele chega a quase se esquecer o que o teria levado até lá.

- Como vai, Érico? A viagem foi confusa, talvez um pouco perturbada, mas imagino que logo toda confusão em que você se encontra irá se resolver. Sente-se.

- Bom... Não vou estranhar o fato de você saber meu nome, pois sua funcionária também sabia... Mas como sabe quem eu sou se eu estou sem documentos ou o que quer que seja, eu cheguei nesta cidade sem nem saber como... a menos que vocês tenham encontrado minhas coisas, carteira, celular, relógio, a polícia sabe quem os pegou?

A mulher se aproxima e se senta próximo a ele. Ela demonstra se sentir à vontade, como se há muito conhecesse Érico e ele nota em si uma atitude de quase intimidade com a prefeita, praticamente ignorando a situação em que se encontra, talvez pelo fascínio que sua beleza despertou nele. Sentada, as pernas juntas e os cotovelos sobre as coxas, é ela quem inicia um diálogo, com uma postura que parece misturar uma sensualidade contida a um amor quase maternal, fazendo-o quase que voluntariamente declará-la como a dona de toda a situação.

- O que está acontecendo com você não é de todo estranho. Praticamente todos que vieram parar aqui não se lembram de ter chegado a este lugar, que nós vamos chamar de cidade. Seja como for, a situação em que você se encontra nem de longe é tão ruim quanto você acredita que é.

- Olha, eu já escutei coisa parecida de um monte de gente aqui hoje, e o ponto em comum é que todos me disseram pra procurar a prefeita da cidade. Eu vim aqui, então, acreditando que ia ter algum esclarecimento, que alguém ia me ajudar a resolver minha situação e talvez até a voltar pra casa, mas, agora, tudo que eu tô escutando é a mesma ladainha de que eu não preciso me preocupar, que tudo está bem e que meu lugar é aqui. Afinal, o que tá acontecendo? Você é parte desse complô, desse sequestro? Isso é pegadinha ou o quê? E que catso de cidade é essa onde não se tem placas indicativas, onde não se passa carro na rua, sem internet, telefone ou qualquer tipo de comunicação? Acho que já chegou a hora de alguém me dar uma explicação plausível... – A explanação de Érico é subitamente interrompida quando ele é subitamente surpreendido por uma expressão do rosto da mulher que lhe fazem sentir como se subitamente a temperatura de seu próprio corpo houvesse despencado; um leve sorriso e um olhar que, estranhamente, lhe mostram uma expressão vazia, desprovida de calor humano ou sequer de vida, lhe causam uma emoção que se coloca entre um medo terrível e um fascínio alucinante, ao qual ele não teria escolha senão se render. Ele respira fundo, ainda que por reflexo, já que não há necessidade voraz de tomar fôlego, e não encontra mais palavras para prosseguir, de forma que a voz dela é a próxima a ser ouvida e mesmo a se impor, embora de forma mais aceita que forçada.

- Eu tenho total ciência de sua situação, Érico da Costa Mendes.

- Mas como sabe quem eu sou? Também sabe como vim parar aqui?

- Sim. Da mesma forma que sei da estória de todos com quem você conversou desde que chegou aqui. Eu conheço a todos, pois, cada um deles, ainda que indiretamente, tem uma estória ligada a mim, uma vez que, no final de cada uma delas, viriam se encontrar comigo um dia. Nosso encontro não foi casual, cedo ou tarde iria ocorrer, embora a forma como ocorreu não lhes fosse esperada e decorrente da ação direta ou indireta deles.

- Pelo jeito a última coisa que vou conseguir aqui é uma resposta direta...

- Talvez porque ainda não esteja preparado pra ter uma... Ou nem precise, talvez você já saiba onde está e simplesmente não esteja preparado psicologicamente para aceitar isso.

- Claro que não aceito, eu tenho minha vida, minha casa, minha mulher... não quero estar em outro lugar que não seja com ela. Admito que fiquei admirado pelo sossego deste lugar e francamente pensei até em mudar pra cá um dia, mas esse agora não é o caso.

- Eu diria que é exatamente o caso, Érico. Você vai caminhar comigo agora, existe um local que eu preciso lhe mostrar.

- Moça, eu não vou a lugar nenhum, tudo que eu quero saber é onde eu estou, que cidade é essa e como posso voltar pra... casa. – quando Érico está para terminar a frase, a misteriosa mulher coloca a mão em seu rosto e ele percebe sua visão se apagar por um lapso de tempo tão curto que ele não conseguiria descrever. Da mesma forma que há pouco ele se encontrava em uma estrada deserta sem saber como havida ido parar ali, agora se via em uma rua residencial, na calçada em frente a uma de suas casas:

- Mas que catso...

- Calma, Érico, você não tem nada a temer. Me acompanhe.

- Meu, agora eu tenho certeza, foi alguma coisa que botaram na minha cerveja...

- Eu posso garantir que a cerveja que tomou estava ótima. Aliás, a despeito do seu país não ser necessariamente um dos melhores fabricantes, você fez o favor a si mesmo de apenas consumir os melhores licores possíveis. Agora, venha.

- Pra onde? – Ela aponta.

- Pra dentro desta casa. É um lugar que você precisa conhecer.

Os dois sobem os degraus da entrada frontal de uma casa de arquitetura com a qual a maioria dos brasileiros não se encontra familiarizada. A fachada é bem semelhante à da prefeitura, lembrando ainda as casas de famílias de classe média alta que Érico está acostumado a ver em filmes americanos.

- Olha, eu já tenho praticamente certeza que isso aqui é só um sonho doido, que eu bebi demais e caí no sono na mesa do bar e que o Claudionor vai me acordar daqui a pouco com um copo de água gelada na cara. Beleza, vamos ver o que tá acontecendo aqui.

- Claudionor está ocupado demais para acordar você, Érico. Esta casa é sua, é aqui que você vai passar seus próximos dias, espero que vá se sentir confortável.

- Minha casa? Você é prefeita desta cidade ou é corretora de imóveis? Por um lado, parecem ser totalmente autossuficientes, por outro até a prefeita faz um corre como corretora pra poder se manter?! Bom, orçamento de cidade pequena deve ser uma mer...

- Eu não estou colocando este imóvel à venda. Esta casa pertence a você. Você vai estar passando seus dias neste local e não vai retornar ao lugar onde vive. Não existe uma versão desta realidade em que você deixa este plano e retorna até sua esposa.

- Tá, e o que te faz pensar que eu pretendo ficar aqui? Vamos ver que argumento você vai usar pra me convencer.

- Eu preciso de argumentos para convencê-lo tanto quanto uma pedra precisa de algum para afundar em um rio, Érico. Quanto mais cedo você aceitar o que aconteceu em vez de questionar aquilo que eu digo, melhor será.

- E o que aconteceu?

- Você não se lembra de quando estava com Claudionor no bar e, subitamente, em meio à cerveja e os salgadinhos, começou a se sentir mal? Não lembra do formigamento no braço, da dor no estômago e os tremores na boca antes de tudo começar a ficar escuro?

E, subitamente, as lembranças começam a se manifestar na mente de Érico, mudando a expressão em seu rosto. Um medo terrível toma conta de si e ele aos poucos se vê novamente em um bar, junto ao amigo Claudionor, que procura ajuda em volta à medida em que ele começa a enfartar enquanto os dois matam uma caneca atrás da outra, riem, conversam, e detonam uma tábua de frios, como é de seu costume nas sextas-feiras. Ele se vê, caindo ao chão, enquanto Claudionor observa, atônito, sem saber como reagir ao problema sem piorar a condição do amigo, e a multidão se perde, perguntando uns aos outros o que acontece até que, finalmente, Érico começa a vomitar, deitado, terminando por morrer afogado com o próprio vômito. A forma como ele treme e se convulsiona chega a ser tão hilária que alguns, mais ou menos bêbados, observam e começam a rir.

Sem conseguir suportar a carga de imagens e enfraquecido pela súbita consciência de que o que presencia agora não é um sonho, Érico sente as pernas enfraquecerem, sentando-se ao sofá que se encontra próximo de si, diante dos olhos da prefeita, que apenas o observa, sem demonstrar qualquer reação, como se já estivesse esperando que Érico não fosse suportar o que viu.

- Não... isso é conversa...não pode tá acontecendo, eu não tenho idade pra isso ainda...

- Mas está acontecendo, Érico. E, como eu disse, quanto antes você aceitar, melhor. Ou será que é tão difícil aceitar que está morto?

Uma decepção sem limites acaba por tomar conta de Érico, que leva as mãos ao rosto e pensa em tudo que ficou para trás, desde o trabalho, a esposa, sua casa, todas as possibilidades de ascensão na carreira de engenheiro, tudo, de repente, se mostra distante, exceto por suas lembranças. Quando finalmente consegue ficar de pé, ele se volta à mulher, tomando fôlego, novamente mais por força do hábito, e retoma o diálogo, ainda tentando conter o nervosismo:

- E quem é você?

- Você sabe quem eu sou... mas eu acho este visual mais interessante que o do manto e da foice...até porque leva mais tempo que pra alguns do que pra outros aceitar que veio parar aqui. Mas, como eu disse ou outros que são aspectos e até extensões de mim já te disseram, você não tem o que temer aqui. Aliás, se existe algo de que você está livre, agora, é do temor do que quer que seja.

- Mas o que vai ser de mim? Tudo que eu mais amava, tudo e todos, ficaram pra trás. O que eu vou fazer aqui, com todos que eu amava longe de mim?

- Tão logo você aprenda a se desapegar do que ficou para trás você encontrará toda paz que existe aqui. É o único jeito de se libertar e não permanecer preso nesse sentimento de uma eterna luta que você nunca vai vencer. Mas eu tenho intenção de ajudar você a se preparar para sua nova fase, desde que esteja aberto a isso.

- Acho que não tenho mais escolha... tenho?

- Não, você não tem... Mas eu posso lhe garantir que você não tem razão alguma para me odiar ou me temer, pois não fui concebida para ser seu mal, mas, talvez, o seu bem maior, haja visto que, todos os bens, depois de mim, se tornam desnecessários. Sejam eles sentimentais, materiais ou espirituais.

- Como você mesma disse, acho que não tenho escolha a não ser acreditar nisso.

- E digo porque você verá que outra opção não existe pelo fato de eu ser a única escolha real. Caminhe comigo e vamos conhecer o lar com que eu te presenteei, enquanto eu lhe falo um pouco mais sobre a dimensão dos fatos ocorridos aqui.

Eles iniciam uma caminhada ao longo do imóvel, da cozinha até os quartos, dos banheiros até o sótão, indo até a saída dos fundos, enquanto aquela que se revelou como o fim de tudo esclarece a razão de ser a única opção que pode ser acatada por Érico:

- Ao contrário do que foi passado ao longo de sua vida ou a dos demais, não existe forma de eu ser considerada como algo maligno ou cujo toque deveria ser temido. Ser acolhido por mim é tão natural quanto nascer. Em um dado momento você é recebido pelo seu mundo e, quase que simultaneamente, começa a ser preparado para adentrar o meu. Seus alimentos, o oxigênio que respira, o modo de vida que escolhem, tornam vocês totalmente propícios a se tornarem meus súditos, sem qualquer exceção e em tempos diferentes. Neste exato momento eu estou aqui, me apresentando a você, e outros aspectos de meu ser, da grande extensão dele, estão agindo em seu mundo. Do cristão ao ateu, do muçulmano ao judeu, não existe um único que vá deixar de ser tocado por mim. Desde que o primeiro ser humano, a primeira bactéria, vírus, animal, tudo que possui vida animada ou não viveu pela primeira vez lá estava eu, pronta e atuante, esperando apenas pelo momento de colher sua alma e aumentar minhas fileiras. Não porque quero, mas porque não teria como ser de outra forma já que, tudo que nasce, morre. Ignore as estórias e lendas sobre quem escapou de meu reino como se ele fosse um inferno ou algo onde se vem para encontrar o sofrimento ou como se a vida fosse a maior de todas as dádivas concebidas. A vida, que foi apresentada a você como o mais precioso de todos os dons, por falsos sacerdotes que tinham por objetivo apenas manter sua espécie sob controle, é algo frágil e que tem de ser constantemente alimentada, seja pela busca da felicidade ou através de uma luta diária que apenas os mais fortes entre vocês podem suportar. É por isso que eu, diariamente, venho a ceifar milhões de vidas, existindo e sendo a mesma desde o início dos tempos.

-O que você quer dizer com “manter sua espécie sob controle”? Quer dizer que Deus não existe?

- Talvez você devesse se perguntar se o suposto criador, este que sua espécie optou por chamar de Deus, não seria, na verdade, um monstro, uma vez que seus correlatos humanos são frágeis física e moralmente e precisam ser ensinados a praticar aquilo que consideram ser bom e já nascem sabendo o que consideram ser ruim, ao passo que animais, considerados inferiores, já parecem ter plena noção de que o que fazem é apenas pela sobrevivência. Entre humanos não se encontram bons ou maus, exceto por suas próprias concepções pessoais, como o fato de que servir a um Deus que consideram superior se torna, na maioria dos casos, uma justificativa para suas ações, sejam elas quais forem. Mas, ironicamente, os seguidores deste Deus são justamente os mais capazes de praticar ações típicas daqueles que julgam, criticam e perseguem, pois eles mesmos buscam a este Deus não por amor, mas porque precisam de salvação. Mas, diferente dos que servem ao chamado anjo caído, os servidores do Pai Celestial não são capazes de assumir que buscam o paraíso, ao contrário dos que são perseguidos por eles e assumem estar atrás de favores. Me diga, então, se este Deus é perfeito, como pode ter se arrependido da criação da humanidade e tê-la destruída por um dilúvio? Arrependimento pressupõe erro, quem erra não pode ser considerado perfeito. Ou será que não pensaram nisso durante a concepção Dele?

As reflexões da morte deixam Érico perplexo, somando-se aos acontecimentos desde sua chegada àquela terra.

- Mas apesar do que você diz, existem coisas boas, como minha mulher, meus amigos...

- Imagino que se refira à sua realização pessoal através da total dependência daqueles que diz amar. Ora, o que é o amor humano senão um lobo vestido de cordeiro, uma vez que mesmo quando você ama alguém a ponto de dar sua vida por esta pessoa o está fazendo, em primeiro lugar, porque isso satisfaz a você mesmo? Acredita que não é assim com sua mulher, com seus amigos ou que até mesmo o Jesus criado pelos cristãos não se sacrificou unicamente pelo temor de ser condenado ao inferno de seu Deus? Ou que esse amor realmente seria perfeito, como este mesmo Deus que, talvez por vaidade, permitiu que uma provocação de Satanás o levasse a condenar seu servo, Jó, a um sofrimento infernal unicamente para provar que mesmo sob tormento ele seria leal? Já parou pra pensar que a espinha dorsal desta crença é justamente o fato de que quem paga por seus pecados é alguém que nada tem a ver com eles, um inocente sem falta alguma, algo que parece mais o papel do próprio diabo? No que diz respeito aqueles que você ama eu poderia dizer muito mais, acha mesmo que sempre houve lealdade, que você foi o único entre aqueles com quem se relaciona a ter se deitado sobre sua cama e possuir sua esposa? Mesmo quando ela mais te amou e mais alegou ser leal, no final das contas, ela só foi leal a si mesma.

Érico permanece estático, não apenas pelas palavras fortes que acaba de ouvir, mas pelo fato de terem sido pronunciadas por alguém com autoridade para fazê-lo e que, sem dúvida, conhece o plano espiritual na prática e teoria. O que poderia dizer agora, uma vez que tomou conhecimento do que é, do que foi sua própria vida e que tudo o que viveu, dos bons aos maus momentos, pode não ter realmente sido aquilo que seus olhos acreditavam ter sido.

- O que eu sou, então, o que foi minha vida, tudo o que eu passei? No final tudo não passou de uma encenação, não existe paz pra mim?

- Você, como todo o resto, foi apenas mais um personagem no repertório de piadas de humor negro de Deus, que alguns escolheram chamar de existência. Outro ser cujo desejo e vontade foram moldados para servir ao interesse do coletivo porque não conseguiriam viver em paz uns com os outros, caso fizessem aquilo que realmente têm vontade, haja visto que seu único propósito de existência é a autodestruição. Menos para alguns, mais para outros, seja como for, a grande realidade é que vocês nasceram para serem doutrinados, salvo raras exceções. A única paz verdadeira que você encontrará será no momento em que aceitar a mim, deixar para trás aquilo que já chamou de vida e reconhecer que eu sou o único caminho real. Mesmo porque você não irá a parte alguma além daqui, quer aceite isso ou não. Caminhará algumas vezes pelo mundo dos vivos, causando momentos de distúrbio aos que estiverem ao redor e também a si mesmo, a menos que aceite que tudo está acabado e que agora, sim, você está completo e habitando um plano que pode chamar de superior.

Ele respira fundo mais uma vez, e olha em volta. Pensa no que foi dito, pensa no que virá em seguida e, ao mesmo tempo, tenta entender um estranho sentimento de paz que parece se sobrepor à angustia que sentiu no momento em que soube que sua vida se extinguira. A esposa, os amigos, a casa, parecem, como que automaticamente, se tornar uma reles recordação, já consciente que em breve nem mesmo isso serão. Final e inevitavelmente decidido, ele se vira para aquela que se tornou seu destino final e lhe responde, desta vez, sem hesitação ou medo:

- Eu aceito você... mas o que vem em seguida?

Ela mais uma vez toca o rosto de Érico, que torna a ver tudo se apagar para, logo em seguida, se ver em um quarto, que acredita ser seu:

- Agora venha. Me ame, me tome, ao mesmo tempo em que será tomado, e me aceite como única verdade neste plano, que será o único que você virá a conhecer daqui em diante. – Ela retira seu vestido e em seguida despe o recém-chegado, levando-o para cama, e ambos passam qualquer que seja o conceito de tempo utilizado naquele plano espiritual em um misto de ternura, depravação e destreza física. O tempo parece parar totalmente, como seria de se esperar de dois seres que possuem a eternidade à sua disposição. As poucas lembranças da vida anterior de Érico logo desaparecem ou se tornam tão importantes quanto seriam caso não pudessem ser detectadas em sua mente. Seja como for, ele a invade até a exaustão fazendo uso de uma disposição que só o desespero ou a total paz de espírito poderiam lhe conceder e, tão logo terminem, permanecem deitados nos braços um do outro, sentindo a respiração arfante e o pulso acelerado um do outro.

Horas depois, ela se levanta, se veste e parte, sorrindo delicadamente para o homem cuja alma agora é propriedade sua. De alguma maneira, Érico não espera necessariamente voltar a vê-la, pois o principal já foi feito: ele a aceitou, a amou e agora está em paz como jamais esteve e jamais estará.


 

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